A DESPEDIDA DO PASTOR D. ENZO
Ao findar o “dia Mundial das Missões”, aquele que teve por missão pastorear o povo de Deus na diocese de Araçuaí, termina também a sua carreira terrestre, já aspirando desde já, passar pelos umbrais da pátria celeste. Dom Crescênzio Rinaldini, italiano de boa cepa da província e diocese de Bréscia, incrustada entre as regiões do Vêneto e Mântua, nasceu aos 27 de dezembro de 1925, sendo seus pais o honrado casal Luduvico e Corina Rinaldini. Segundo informou-me seu amigo e confidente padre Carlos Badaró, que terá a difícil missão de abrir seu testamento após as exéquias, ele tinha apenas uma irmã, dona Franca Rinaldini, que faleceu há exatos dois meses (agosto de 2011). Criado sob o influxo da fé, desde cedo sua vocação foi despertada de maneira firma e clarividente, porque teve seus passos guiados por uma fé familiar tradicional e baseada no sagrado magistério da Igreja, como era comum acontecer no seio das famílias latinas naquele tempo. Após passar pelos caminhos esperançosos e espinhosos da vida do seminário, receber a primeira e segunda tonsura, e concluir com zelo e acuidade os cursos de Teologia e Filosofia, guiados pelos mestres e doutores da Igreja, recebeu as ordens sacerdotais sob a imposição das mãos do bispo diocesano de Bréscia, em 26 de junho de 1949. Repetiu-se com ele o mesmo ritual que se repete na Igreja Católica, desde a época em que Cristo Jesus ordenou seus discípulos no inicio do seu ministério terrestre, fundamento da fé da religião Católica Apostólica Romana.
Foi ele um dos baluartes da Igreja na sua fase transicional, vinda do impacto da “Segunda Grande Guerra” e do Concilio Tridentino, no vendaval daquela fase mais agressiva da chamada “romanização” empreendida por Pacelli e Bento XIV, principais construtores do “Código Canônico da Igreja Católica”, encetado em 1917, mas de forma mais eficaz, a partir de 1932. O ápice da incrementação desse código na Igreja inteira se deu em pleno apogeu do delírio hitlerista na Alemanha, e no conturbado papado de Pio XII (cardeal Pacelli). Se a Igreja pré-tridentina foi uma entidade mais próxima do leigo, propiciando uma fé mais próxima da sua realidade sócio-geográfica, com enorme poder dado às confrarias e ordens terceiras, especialmente as Irmandades do Santíssimo e do Amparo e as Ordens do Carmo e São Francisco; entretanto, isso se deu com o prejuízo da atuação do clero, que se via tolhido. Antes, longe do braço do Vaticano, era enorme o poder das benzedeiras sobre o povo e do curandeirismo mítico cristalizado nas massas, que a partir do Concilio de Trento ((1545—1563), convocado pelo papa Paulo III, passou a ter um clero mais presente e uma autoridade mais dinâmica, amputando os amplos poderes laicos da comunidade local na administração paroquial. O resultado disso, segundo críticos abalizados, foi uma igreja toda centrada sobre a figura clerical, deixando o povo de Deus como mero expectador. Isso durou até o Concílio Vaticano II (1961—1965), convocado pela bula papal “Humanae salutis”, de João XXIII, o papa de transição que deu novo método ao caminho da Igreja e que produziu profundas reformas no centro teológico da Igreja.
Foi nesse modelo que o padre “Enzo”, na força da madureza intelectual e física, dono de profundo aprendizado teológico, filosófico e humano, empreendeu em sua vida mais um sentido profundamente espiritual: vir para o Brasil, especialmente para a diocese de Araçuaí, no médio vale do Jequitinhonha, região assolada pela seca, pela doença endêmica de Chagas e pela pobreza extrema e humilhante que grassava desde a nascente até a foz do rio Jequitinhonha. Primeiro, ele prestou úteis e bons serviços a Deus e à seu povo, na paróquia de São Roque de Itaobim. Ali, ele demonstrou a força do seu amor ao sacerdócio e a pureza da sua fidelidade a Igreja de Cristo, que preferiu o amor e a defeza dos pobres, optando preferencialmente por eles na década de 1970, em Puebla, do que prestar a reverência covarde e cômoda aos ricos e poderosos, ébrios da idolatria da pecúnia. Depois, guiado pelo influxo do Espírito Santo, o santo papa João Paulo II, o elevou à dignidade de Bispo, em 1981, para pastorear as almas carentes e espoliadas que viviam no risco geográfico da pobríssima diocese de Araçuaí, e que vivia espiritualmente os seus “quarenta anos de travessia pelo deserto”. Tomou posse em maio de 1982, logo após a sagração, e seu apostolado foi dos mais fecundos que a nossa diocese conheceu. Homem profundo e simples ao mesmo tempo, dom Enzo, lembra a um só tempo, as figuras solares de Santo Agostinho e de São Francisco. Santo Agostinho, pela ânsia de saber e pelo gosto de ensinar; São Francisco, pelo gosto da simplicidade, pelo amor as coisas do espírito e pela inarredável força da doação que habitava o seu corpo físico.
Agora que ele parte para a pátria celeste, prêmio a que aspira os justos e os puros de coração, dele se poderá dizer ou inscrever em seu túmulo como imorredouro epitáfio: “Nasceu como todos, viveu como os justos e adormeceu na morte como os santos, aspirando com suas obras o prêmio da vida eterna”. O clero do Brasil vive um luto dolorido e o vale do Jequitinhonha perde um de seus filhos honorários mais ilustres e combativos. A Igreja Católica fica mais pobre na sua composição humana e terrestre, o céu fica mais brilhante com a sua chegada. Como os padres da Igreja que dom Enzo viu na infância e mocidade, repito pela fé que recebi também pela tradição familiar —“Pax animae tuae, nunc et semper, amen! Homem de Deus e do povo.”
O pastor de humanas ovelhas, com sua batina cinza que
contrasta com o rigorismo das antigas vestes sacerdotais
negras e distantes, mostra pelas janelas de seus olhos e
a força de suas palavras, a sua condição de homem simples
e humilde, condição primária de um servo de Deus a serviço
da Igreja e de seu povo.
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