PALAVRA FERIDA
A trajetória poética de Yeda Prates Bernis segue vitoriosa com o lançamento de seu terceiro livro, em 1979, pela Editora Vega, de Belo Horizonte, com o sugestivo título de “Palavra Ferida”. Seu terceiro exercício poético é uma celebração à palavra, instrumento que exterioriza as emoções, os sentires, sonhares, cantares e os falares do ser humano. É com a palavra que o ser humano se revela, e quase sempre, também, se resvala, nas suas relações com o mundo exterior. É pela palavra, embaixatriz do sentimento humano, que o homem fala com o mundo. É por ela, a palavra, que o homem faz-se entender, declama seus versos, declara-se a amada, emite suas emoções. E é a palavra que Yeda Prates Bernis escolhe para celebrar como opção temática, em seu terceiro livro de poemas. Boa escolha, melhor tema não poderia existir. Um pormenor que noto em dona Yeda é o seu extremo bom gosto na escolha dos títulos de sua obra, todos muito significativos.
A qualidade do estro poético da autora, que começou bom, só fez melhorar. Porque “Palavra Ferida”? Quando a palavra se fere ou nos fere? São perguntas bem interessantes e que a poesia transcendental da autora procura responder e desvendar. O poético e o lírico jungem-se, amalgama-se na simbiose completa da intenção-compreensão do poetar bernisiano. Na análise concisa mais profunda de Alphonsus de Guimarães Filho, Yeda Prates Bernis, magistral e serenamente, dirige os olhos aos céus e à terra para compor a sua tela poética. Aliás, a palavra é o princípio. Vejamos o que diz o apóstolo João, companheiro da primeira hora da maior personalidade que já pisou sobre a terra e que construiu a maior doutrina de amor e fraternidade que a humanidade já ouviu— JESUS CRISTO:
"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus[1]."
Começa com a palavra, a palavra está com Deus e em Deus, e ainda é Deus.
Sobre a inspiração nascida da ponte entre o terreno e o celestial, nada mais lindo do que esse poema foi escrito sobre São Francisco, o de Assis, ao que me consta na moderna literatura, até o momento—, FRANCISCO:
Teu gesto,
sagrada
vitória
da loucura.
sagrada
vitória
da loucura.
Teus passos,
pegadas
de luz
pelos tempos.
pegadas
de luz
pelos tempos.
Teu espírito,
leveza
de vôo
de teus pássaros.
leveza
de vôo
de teus pássaros.
Teu amor,
reflexo
do olhar
divino.
reflexo
do olhar
divino.
Já foi dito que o meio tem poderosa influência sobre a criação artística, a composição no todo ou em parte, do artista em processo de composição e no conteúdo final da sua obra. Além do processo transcendental da poesia bernisiana, da sua mensagem espiritual e etérea—, Palavra Ferida, pode e deve ser, o protesto lúdico contra a censura literária e jornalística efetivada entre 1964 e 1982. Afinal, o marido, jornalista Ney Octaviany Bernis, trabalhou a vida inteira com a imprensa noticiosa e militante, ocupando cargos de destaque no meio e até na política. Agruras vistas de perto e de dentro, sentidas com o coração sincero da poeta poliédrica, transcendental e sensível da epiderme até o mais íntimo da medula – desaguaram nas palavras feridas de Yeda Prates Bernis.
Por esse ângulo, pode dizer que quase toda poesia pode ter caráter social. Ouvindo seu interior, porta-voz de uma liberdade superior e desejável, contida num desejo transcendente de paz e harmonia, Yeda, plena de poesia e de razão social, escreveu—,
LIBERTAÇÃO
Tenho a palavra ferida
e a mente amordaçada,
o pé plantado em raiz,
o olho posto na treva.
sou pedra de asa cortada
e anjo atirado ao chão.
Desta urdidura me evado
se a vida, fluindo heráclita
na trama inquieta do tempo
- passando por sobre escombros
pousando em trigais de luz -
tecer-me toda de amor.
e a mente amordaçada,
o pé plantado em raiz,
o olho posto na treva.
sou pedra de asa cortada
e anjo atirado ao chão.
Desta urdidura me evado
se a vida, fluindo heráclita
na trama inquieta do tempo
- passando por sobre escombros
pousando em trigais de luz -
tecer-me toda de amor.
Ainda no cantar social, problemas que se espocam aqui e acolá, alma em transe, gente sofrendo, mundo tristonho e céu cinzento, Yeda confeccionou essa obra-prima—,
SUICIDA
Perdi-me
em cansaço
no espaço da dor:
desaprendi claridade.
em cansaço
no espaço da dor:
desaprendi claridade.
Perdi-me
em cansaço
na treva em abismo:
desaprendi caminho.
em cansaço
na treva em abismo:
desaprendi caminho.
Perdi-me
em cansaço
nas dunas do tédio:
desaprendi harmonia.
em cansaço
nas dunas do tédio:
desaprendi harmonia.
Perdi-me
em cansaço
na névoa da angústia:
desaprendi esperança.
em cansaço
na névoa da angústia:
desaprendi esperança.
Perdi-me
em cansaço
na trilha do anseio:
desaprendi alegria.
em cansaço
na trilha do anseio:
desaprendi alegria.
Perdi-me
em cansaço
no porto da carne:
desaprendi instinto.
em cansaço
no porto da carne:
desaprendi instinto.
Para Yeda, Ariadne pouco importava. O destino não tinha tecelões que o fizesse previsível. Melhor ela disse, no pequeno – talvez brevíssimo, poema—,
DESTINO
Cavalgo
sem rédeas
um potro
indomável.
sem rédeas
um potro
indomável.
Mas o ponto alto é mesmo o poema “Rosa dos ventos”. Nesse poema Yeda atinge o âmago do livro, conseguindo ferir de vida plena o verbo poético. A arte poética sobe a alturas com essa composição, que só ela mesmo pode falar por si:
ROSA DOS VENTOS
Sejam teus pés a minha senda exata
seja tua voz o meu falar isento
sejam teus olhos minha aurora intata
seja teu respirar o meu alento
seja tua voz o meu falar isento
sejam teus olhos minha aurora intata
seja teu respirar o meu alento
sejam teus músculos minha carne em sangue
sejam tuas mãos meu infinito porto
seja tua dor o meu viver exangue
sejam tuas rugas meu andar absorto
sejam tuas mãos meu infinito porto
seja tua dor o meu viver exangue
sejam tuas rugas meu andar absorto
seja teu desalento meu cansaço
seja tua paisagem meu azul
sejam teus sonhos todo o meu espaço
seja teu norte-sul meu norte-sul.
seja tua paisagem meu azul
sejam teus sonhos todo o meu espaço
seja teu norte-sul meu norte-sul.
Nada mais é necessário. O livro fala por si. “Palavra Ferida” é mais um êxito de Yeda Prates Bernis.
***
Sintetizando, Alphonsus de Guimarães Filho, de atávicas tradições poéticas, herdeiros de outros tantos Guimarães poetas e romancistas, assim expressou sua compreensão acerca da poesia de Yeda:
“Um olho na terra, outro no céu: este verso de "Auto-Retrato" é bem significativo da posição que Yeda Prates Bernis assume em seu livro, Palavra Ferida. Quer dizer, mostra-se ela apta a traduzir sentimentos nascidos da realidade que a envolve e a apreender aquelas vozes que vêm do além do ser e se ligam a uma supra-realidade de que todo poeta, na sua busca do essencial, acaba por sentir a ressonância”. E prossegue, louvando justificadamente a obra bernisiana:
“Alcançando a unidade através de variado tom, Yeda Prates Bernis, afirma ainda uma vez em ‘Palavra Ferida’— título vivamente significativo do que contém, do que irradia este novo a belo livro seu - a paixão da poesia, da poesia que se mostra, nestas páginas, como de resto já se mostrara em anteriores poemas seus, em sintonia com a sua maneira e a capacidade de, mesmo reconhecendo-lhe as arestas e asperezas, envolvê-la de amor e de esperança”.
***
Com “Palavra Ferida” Yeda Prates Bernis atinge o alvo: a sensibilidade de seus leitores. Continua a melhor poeta de Minas. Firma-se como a sucessora que mais de perto lembra a lira de Henriqueta Lisboa. Ave Yeda, cheia de graça e de poesia.