ENTRESSOMBRAS DE LUZ
Yeda
Prates Bernis havia prometido não mais lançar
livros. Era justo com ela e injusto conosco, sempre ávidos do alimento
espiritual colhido e dispensado por ela para o nosso repasto. Sempre insisti
para que ela rompesse com essa promessa, primeiro porque seria muito bom para a
literatura mineira e, segundo, porque seria melhor para nós, seus leitores. E
então agora ela resolve fazê-lo, sete anos após subir ao Olimpo da cultura mineira
e ultrapassar os umbrais da Academia Mineira de Letras, coroamento de uma
carreira luminosa nas letras e construção minuciosa de uma obra altíssima,
pontuando Minas no cenário das melhores poetas do Brasil, ombreando com as
estrelas solares Henriqueta Lisboa, Cecília Meirelles e Stella Leonardos. Essa
última ainda encantando à todos nós e produzindo poesia como nunca. As duas últimas
vivendo nas belas páginas que escreveram e em nossos corações.
Yeda é de uma economia verbal
proverbial. Mas esbanja demonstrações de afeto, e devo confessar, não conheço
quem tenha um coração mais generoso que o seu. Escreve pouco. Seus poemas são
curtos, com palavras bem escolhidas e apropriadas para o temário que escolhe.
Busca em tudo o que escreve a transcendência espiritual, talvez numa
reminiscência psicológica do iluminado aprendizado haurido das lições com a
mestra de todos os poetas — a grandiosa Henriqueta Lisboa — de quem foi aluna
na mocidade e uma espécie de herdeira espiritual e intelectual após a sua
partida para o plano superior, uma vez que cursou “Letras Neolatinas nas
Faculdades Santa Maria”, embrião do que é hoje a atual PUC Minas. A aluna
conservou durante toda a vida, profundo respeito e imensa gratidão pela mestra
veneranda, que a encaminhou no caminho das letras e deu-lhe os primeiros
incentivos no artesanato poético. Acho que Henriqueta ainda é uma presença
muito marcante na vida e na literatura de Yeda. Mais que forte, profunda.
Acometida por uma degenerescência
macular, uma doença na qual a mácula, a parte central e mais vital da retina,
se deteriora e embaça a visão —, atualmente ela se compraz em ver os livros
pela ótica de outros, e a sentir a emoção neles aprisionada pela contenção da
leitura no som da voz alheia. Sua empregada Maria do Carmo, mais amiga que
serviçal, se encarregava desse prazer. Foi emocionante para mim vê-las ambas
viajando pelo mundo de Eça de Queirós, romancista português de sua predileção.
Parece-me que uma completava a outra nessa grande viagem que é a leitura de “Os
Maias”, a grande radiografia de uma época e dos costumes sociais da gente
portuguesa.
Seus poemas, escritos à conta gotas, estavam sendo publicados ultimamente
na Revista da Academia Mineira de Letras, entregues à digitação e revisão de
Marília Moura, mas para um público resumidíssimo, uma vez que apenas os
assinantes e membros da AML, tem acesso à ilustrada publicação. E agora vem ela
de editar, em âmbito pessoal, mais um livro de altíssimo nível, a que ela
intitulou “entressombras”. O livro tem o pórtico de entrada com a
apresentação de Maria Lúcia Simões e o prefacio de Lina Tâmega Peixoto, duas
amigas conhecedoras de sua obra e de sua vida, embora ambas tentem escrever sem
contaminar o texto com o vírus da grande devoção que partilham pela poetisa
maior das Minas na atualidade.
O livro não traz pontos altos porque ele todo conserva uma unidade
criadora inigualável, uma inspiração superior e um canto em tom maior às coisas
mais sublimes da vida. As epigrafes são escolhidas à dedo e refletem o alto
poder de concisão da autora aliada à compreensão que ela busca nas pequenas
coisas que a cercam e permeiam a sua vida. É também um livro biográfico,
pessoal, reflexivo de seu mundo interior e da visão alcançada após a impiedosa
degeneração macular. Quando se lhe foram fechadas as janelas oculares de seu
corpo, o sol da esperança penetrou-lhe as entranhas — corpo, alma e espírito —,
para visse em outro plano e de outra forma, aquilo que só o sentimento
plenamente educado e contido é capaz de mostrar: a esperança nunca acaba! A
visão espiritual transcende o corpo e vai ao cerne do espírito. O espírito
sempre achará um atalho para chegar ao plenilúnio do amor e ao ápice da
criação. Ler “Entressombras” é adentrar o mundo de Yeda, com seu consentimento
e intimidade, e desvendar seu mundo. Foi uma gestação difícil para um filho no
outono da vida, mas talvez o filho que faltava para o complemento dos outros
filhos literários dados à luz em toda essa caminhada. Após os poemas recolhidos
“Entre o rosa e o azul”, ultrapassar o nublado de “Enquanto é Noite”,
sarar a “Palavra Ferida”, mostrar seu rumo em “Pêndula”, saciar
seus leitores com o “Grão de Arroz”, navegar “À beira do Outono”,
mirar o mundo “Encostada na Paisagem”, destilar sua sabedoria em “Anotações
sobre Zen e Hai-Kai”, nos brindar com sua maviosa “Antologia Cantata”,
desfilar com seu “Viandante” companheiro da vida inteira, ela nos
convida para adentar seu mundo: “Entressombras”. Digo ao leitor que
aceite o convite, porque o mundo de Yeda é um facho de luz, um nicho de amor e
um rancho de paz. E as sombras de seu mundo é um pouco de entreluz.
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